domingo, 24 de outubro de 2010

QUERO MINHA MÃE.


Abel e eu estamos precisando de férias. Quando começa a perguntar quem tirou de não sei onde a chave de não sei o quê, quando já de manhã espero não fazer comida à noite, estamos a pique de um estúpido enguiço. Sou uma pessoa grata? Às vezes o que se nomeia gratidão é uma forma de amarra. Entendo amor ao inimigo, mas gratidão o que é? Tenho problemas neste particular. Se aviso: passo na sua casa depois do almoço, acrescento logo se Deus quiser, não sendo grata, temo que me castigue com um infortúnio. Bajulo Deus, esta é a verdade, tenho o rabo preso com Ele, o que me impede de voar. Como posso alçar-me com Ele grudado à cauda? Uma esquizofrenia teológica, eu sei, quando fica tudo confuso assim, meu descanso é recolher-me como um tatu-bola e repetir até passar a crise, Senhor, tem piedade de mim. Até em sonhos repito, Senhor, tem piedade de mim, é perfeito. Sensação de confinamento outra vez, minha pele, minha casa, paredes, muro, tudo me poda, me cerca de arame farpado. Coitada da minha mãe, devia estar nesta angústia no dia em que me atingiu: “trem ordinário” Com certeza não suportava a idéia, o fardo de ter-que-dar-conta-daquela-roupa-de-graxa-do-meu-pai, daquele caldo escuro na bacia, fedendo a sabão preto e ela querendo tempo pra ler, ainda que pela milésima vez, meu manual de escola, o ADOREMUS, a REVISTA DE SANTO-ANTONIO. Mãe, que dura e curta vida a sua. Me interditou um reloginho de pulso, mas não teve meios de me proibir ficar no barranco à tarde, vendo os operários saírem da oficina, sabia que eu saberia o motivo. Duas mulheres, nos comunicávamos. Tá alegre, mãe? A senhora não liga de ficar em casa, não? Posso ir no parque com a Dorita? Vai chamar tia Ceição pra conversar com a senhora? Nem na festa da escola, nem na parada pra ver eu carregar a bandeira ela não foi. Não dava para ir de “mantor” porque era de dia com sol quente, gastei cinqüenta anos pra entender. Teve uma lavadeira, a Tina do Moisés, que ela adorava e tratava como rainha. Sua roupa acostumou comigo, Clotilde, nem que eu queira, não consigo largar. Foi um tempo bom de escutar isto, descansei de vê-la lavando roupa com o olhar perdido em outros sítios, sentindo e querendo, com toda certeza, o que qualquer mulher sente e quer, mesmo tendo lavadeira e empregada. Tenho sonhado com a mãe tomando conta de mim, me protegendo os namoros, me dando carinho, deixando, de cara alegre, meus peitinhos nascerem e até perguntando: está sentindo alguma dor, Olímpia? É normal na sua idade. Com certeza aprendeu, nas prédicas às Senhoras do Apostolado, como as mães cristãs deviam orientar suas filhas púberes. Te explico, Olímpia, porque pode te acontecer na escola, não precisa levar susto, não é sangue de doença. Achei minha mãe bacana, uma palavra ainda nova que só os moleques falavam. Coitadas da Graça e da Joana, que nem isso ganharam dela. Morreu antes de me ensinar a lidar com as incômodas e trabalhosas toalhinhas. mãe, mãezinha, mamãezinha, mamãe, e o reino do céu é um festim, quem escondeu isto de você e de mim?

- Adélia Prado -

Texto extraído do livro “Quero minha mãe”, Editora Record – Rio de Janeiro, 2005, pág. 41.

6 comentários:

  1. Mãe é um pedaço do céu que Deus transformou em mulher, diz a canção. Belo texto partilhado, Silvana. Um bom dia para você, beijos no seu coração :)

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  2. Silvana
    Muito feliz com sua visita e com o fato de ter encontrado você entre os seguidores do meu modesto espaço, vim conhecer o seu e estou simplesmente encantada!
    Não bastasse a beleza de tudo, aqui, ainda chego bem num dia de Adélia Prado!
    "Quero minha mãe"...
    Riqueza de texto, que você , tão bem, soube selecionar!
    Grata, querida.
    Abraço apertado

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  3. Olá minha querida, e peço permissão para assim a chama-la, agradeço sua visita e comentário em meu pequeno espaço, muito me alegrou. Aproveito para dizer que seu espaço é um luxo, simples, bonito, amigável, terno, adorei. Adorei também este trecho do livro de Adélia Prado, no ano 2000 tive a oportunidade de participar de uma palestra desta maravilhosa poetiza e escritora na Universidade Federal de Juiz de Fora (MG), ela é fantástica. Um grande abraço e tenha uma ótima semana.

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  4. Lindo... Emocionante...
    Me fez lembrar um texto que li na Reader's Digest - Seleções, de uma mãe muito simples analfabeta, que economiza dinheiro para comprar um doce muito especial para familia, e acaba comprando batatas em conservas enganando-se pela figura achando ser deliciosas pêras em conserva... É lindo o depoimento da filha sobre o caso...
    Mãe ser sublime... Eu ultimamente necessito muito da presença da minha...
    Beijos...

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  5. Parece uma leitura muito gostosa!
    Deu vontade de ler.
    Passando também para divulgar o mais novo cantinho ( Sim, outro deles!) rsrs
    É o " Resenhando". Ainda é novo, está fresquinho...
    Passa lá!
    pS: Aceito sugestões e até possíveis resenhas para publicação.
    Bjinhus!
    =*

    http://resenhandomm.blogspot.com/

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  6. Lindo e emocionante texto! Parabéns!
    www.construtoradepalavras.com.br

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