sábado, 31 de julho de 2010

FAZER TRINTA ANOS.

Quatro pessoas, num mesmo dia, me dizem que vão fazer 30 anos. E me anunciam isto com uma certa gravidade. Nenhuma está dizendo: vou tomar um sorvete na esquina, ou: vou ali comprar um jornal. Na verdade estão proclamando: vou fazer 30 anos e, por favor, prestem atenção, quero cumplicidade, porque estou no limiar de alguma coisa grave.
Antes dos 30 as coisas são diferentes. Claro que há algumas datas significativas, mas fazer 7, 14, 18 ou 21 é ir numa escalada montanha acima, enquanto fazer 30 anos é chegar no primeiro grande patamar de onde se pode mais agudamente descortinar.
Fazer 40, 50 ou 60 é um outro ritual, uma outra crônica, e um dia eu chego lá. Mas fazer 30 anos é mais que um rito de passagem, é um rito de iniciação, um ato realmente inaugural. Talvez haja quem faça 30 anos aos 25, outros aos 45, e alguns, nunca. Sei que tem gente que não fará jamais 30 anos. Não há como obrigá-los. Não sabem o que perdem os que não querem celebrar os 30 anos. Fazer 30 anos é coisa fina, é começar a provar do néctar dos deuses e descobrir que sabor tem a eternidade. O paladar, o tato, o olfato, a visão e todos os sentidos estão começando a tirar prazeres indizíveis das coisas. Fazer 30 anos, bem poderia dizer Clarice Lispector, é cair em área sagrada.
Até os 30, me dizia um amigo, a gente vai emitindo promissórias. A partir daí é hora de começar a pagar. Mas também se poderia dizer: até essa idade fez-se o aprendizado básico. Cumpriu-se o longo ciclo escolar, que parecia interminável, já se foi do primário ao doutorado. A profissão já deve ter sido escolhida. Já se teve a primeira mesa de trabalho, escritório ou negócio. Já se casou a primeira vez, já se teve o primeiro filho. A vida já se inaugurou em fraldas, fotos, festas, viagens, todo tipo de viagens, até das drogas já retornou quem tinha que retornar.
Quando alguém faz 30 anos, não creiam que seja uma coisa fácil. Não é simplesmente, como num jogo de amarelinha, pular da casa dos 29 para a dos 30 saltitantemente. Fazer 30 anos é cair numa epifania. Fazer 30 anos é como ir à Europa pela primeira vez. Fazer 30 anos é como o mineiro vê pela primeira vez o mar.
Um dia eu fiz 30 anos. Estava ali no estrangeiro, estranho em toda a estranheza do ser, à beira-mar, na Califórnia. Era um homem e seus trinta anos. Mais que isto: um homem e seus trinta amos. Um homem e seus trinta corpos, como os anéis de um tronco, cheio de eus e nós, arborizado, arborizando, ao sol e a sós.
Na verdade, fazer 30 anos não é para qualquer um. Fazer 30 anos é, de repente, descobrir-se no tempo. Antes, vive-se no espaço. Viver no espaço é mais fácil e deslizante. É mais corporal e objetivo. Pode-se patinar e esquiar amplamente.
Mas fazer 30 anos é como sair do espaço e penetrar no tempo. E penetrar no tempo é mister de grande responsabilidade. É descobrir outra dimensão além dos dedos da mão. É como se algo mais denso se tivesse criado sob a couraça da casca. Algo, no entanto, mais tênue que uma membrana. Algo como um centro, às vezes móvel, é verdade, mas um centro de dor colorido. Algo mais que uma nebulosa, algo assim pulsante que se entreabrisse em sementes.
Aos 30 já se aprendeu os limites da ilha, já se sabe de onde sopram os tufões e, como o náufrago que se salva, é hora de se autocartografar. Já se sabe que um tempo em nós destila, que no tempo nos deslocamos, que no tempo a gente se dilui e se dilema. Fazer 30 anos é como uma pedra que já não precisa exibir preciosidade, porque já não cabe em preços. É como a ave que canta, não para se denunciar, senão para amanhecer.
Fazer 30 anos é passar da reta à curva. Fazer 30 anos é passar da quantidade à qualidade. Fazer 30 anos é passar do espaço ao tempo. É quando se operam maravilhas como a um cego em Jericó.
Fazer 30 anos é mais do que chegar ao primeiro grande patamar. É mais que poder olhar pra trás. Chegar aos 30 é hora de se abismar. Por isto é necessário ter asas, e sobre o abismo voar.

- Affonso Romano de Sant'anna -

(O texto acima foi extraído do livro "A Mulher Madura", Editora Rocco - Rio de Janeiro, 1986, pág. 36).

quinta-feira, 29 de julho de 2010

EU SEI, MAS NÃO DEVIA.


Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.

- Marina Colasanti -

quarta-feira, 28 de julho de 2010

DONA DOIDA.

Uma vez, quando eu era menina, choveu grosso
com trovoadas e clarões, exatamente como chove agora.
 Quando se pôde abrir as janelas,
  as poças tremiam com os últimos pingos.
 Minha mãe, como quem sabe que vai escrever um poema,
 decidiu inspirada: chuchu novinho, angu, molho de ovos.
Fui buscar os chuchus e estou voltando agora,
 trinta anos depois.  Não encontrei minha mãe.
 A mulher que me abriu a porta, riu de dona tão velha,
com sombrinha infantil e coxas à mostra.
Meus filhos me repudiaram envergonhados,
meu marido ficou triste até a morte,
 eu fiquei doida no encalço.
 Só melhoro quando chove.

- ADÉLIA PRADO -

"Poesia Reunida", Editora Siciliano - 1991, São Paulo, página 108.

terça-feira, 27 de julho de 2010

DOR.

 A alegria dispersa; a dor concentra.
É na dor que, em verdade, sentimos que um filho é carne da nossa carne.
Ao vê-lo sofrer vibramos doloridamente e, se ele geme, o seu gemido ressoa-nos no coração.
Os ais que lhe escapam do martírio são flechas que nos lancinam e, se baixam do clamor à queixa humilde, doem-nos ainda mais, como a punção de uma lanceta aguda que se nos crava paulatinamente.
Se o enfermo sara esquecem-se tais vozes, se elas, porém, se calam suspensas pela morte, então represam-se-nos no íntimo, e nunca mais o coração as esquece.
E os gemidos nele perduram como fica eterno nas conchas, o marulho soturno do mar.

- Coelho Neto -

sexta-feira, 23 de julho de 2010

A MORTE DOS OUTROS.

A morte alheia tem anedota
        que prende o morto ao dia-a-dia,
        que ainda o obriga a estar conosco
        já morto, ainda aniversaria.

        Só que não vamos pelo morto:
        Queremos ver a companheira,
        a mulher  com que agora vive;
        comprá-la, de alguma maneira.

        Dizer-lhe: do marido de hoje
        mais do que amigos: fomos manos;
        para que, amiga, salte um nome
        de seu preciso livro Quandos.

( João Cabral de Melo Neto)

sexta-feira, 16 de julho de 2010

CÂNTIGO NEGRO.

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!

- José Régio -

quinta-feira, 15 de julho de 2010

COMPOSIÇÃO INFANTIL.

A vaca é um bicho de quatro patas que dá carne de vaca.
Tem um rabo pra espantar as moscas e uma cara muito séria de quem está fazendo sempre essa coisa importante que é o leite.
O marido da vaca é intitulado boi.
A vaca tem dois estômagos e por isso fica sempre com a comida indo e vindo na boca que, quando a gente faz, a mamãe diz que porcaria!
Já vi ordenhar vaca, que é quando ela faz aquela cara fingindo que não está gostando nada.
Vaca dizem que já custa muito cara viva, agora no açougue custa muito mais e em bife então nem se fala.
A vaca a professora ensina que ela dá leite mas nas horas de tirar é que a gente vê que ela dá mas custa.
Vaca só se alimenta de grama e daí eu não sei porque o leite não é verde.
Se a gente fica perto ela fica olhando com olhar de que a gente fez alguma coisa com ela e ela está muito magoada.
Eu acho que todas as vacas vieram dos Estados Unidos porque ainda não perderam o jeitão de quem masca chiclete.

- Millôr Fernandes -

quarta-feira, 14 de julho de 2010

CHICO XAVIER.


"Nasceste no lar que precisavas.
Vestistes o corpo físico que merecias.
Moras onde melhor Deus te proporcionou, de acordo com o teu adiantamento.
Possui os recursos financeiros coerentes  com as tuas necessidades, nem mais -  nem menos - , mas o justo para as tuas lutas terrenas.
Teu ambiente de trabalho é o que elegestes, espontaneamente para a tua realização.
Teus parentes, amigos são almas que atraístes, com tua própria afinidade.
Portanto, teu destino está constantemente sob teu controle, tu escolhes, recolhes, eleges, atrai, buscas, expulsas, modificas tudo aquilo que te rodeia a existência.
Teus pensamentos e vontades são a chave de teus atos e atitudes, fontes de atração e repulsão na tua jornada vivência. Portanto, não reclames nem te faças de vítima. Antes de tudo, analisa e observa.
A mudança está em tuas mãos, reprograma a tua meta, busca o bem e viverás melhor.
Embora ninguém possa voltar atrás e fazer um novo começo, qualquer um pode começar agora e fazer um novo Fim".
- Chico Xavier -

segunda-feira, 5 de julho de 2010

NÃO SEI...

NÃO SEI...

Não sei... se a vida é curta...
Não sei...
Não sei...
se a vida é curta
ou longa demais para nós.

Mas sei que nada do que vivemos
tem sentido,
se não tocarmos o coração das pessoas.

Muitas vezes basta ser:
colo que acolhe,
braço que envolve,
palavra que conforta,
silêncio que respeita,
alegria que contagia,
lágrima que corre,
olhar que sacia,
amor que promove.

E isso não é coisa de outro mundo:
é o que dá sentido à vida.

É o que faz com que ela
não seja nem curta,
nem longa demais,
mas que seja intensa,
verdadeira e pura...
enquanto durar.

- Cora Coralina - 

quinta-feira, 1 de julho de 2010

CRIME.

    "Ilustrado senhor, ficai ciente
de um crime cometido há poucos anos:
Meu triste coração, um pobre doente,
 que da vida provara os desenganos,
  foi um dia ferido mortalmente
por dois olhos perversos, dois tiranos,
 que vivem até hoje, impunemente
soltos, causando os mais atrozes danos.
O suplicante, que é o advogado
da vítima, e, portanto, interessado
nesse processo que um mistério exprime,
  em nome da Justiça, pede, humilde.
 mandeis prender os olhos de Matilde,
que são autores do nefando crime".

- João de Queiroz Assunção Filho -