quarta-feira, 20 de outubro de 2010

O DESAPARECIDO.


Tarde fria, e então eu me sinto um daqueles velhos poetas de antigamente que sentiam frio na alma quando a tarde estava fria, e então eu sinto uma saudade muito grande, uma saudade de noivo, e penso em ti devagar, bem devagar, com um bem-querer tão certo e limpo, tão fundo e bom que parece que estou te embalando dentro de mim.

Ah, que vontade de escrever bobagens bem meigas, bobagens para todo mundo me achar ridículo e talvez alguém pensar que na verdade estou aproveitando uma crônica muito antiga num dia sem assunto, uma crônica de rapaz; e, entretanto, eu hoje não me sinto rapaz, apenas um menino, com o amor teimoso de um menino, o amor burro e comprido de um menino lírico. Olho-me no espelho e percebo que estou envelhecendo rápida e definitivamente; com esses cabelos brancos parece que não vou morrer, apenas minha imagem vai-se apagando, vou ficando menos nítido, estou parecendo um desses clichês sempre feitos com fotografias antigas que os jornais publicam de um desaparecido que a família procura em vão.

Sim, eu sou um desaparecido cuja esmaecida, inútil foto se publica num canto de uma página interior de jornal, eu sou o irreconhecível, irrecuperável desaparecido que não aparecerá mais nunca, mas só tu sabes que em alguma distante esquina de uma não lembrada cidade estará de pé um homem perplexo, pensando em ti, pensando teimosamente, docemente em ti, meu amor.

- Rubem Braga -

Do livro "A Traição das Elegantes", Editora Sabiá - Rio de Janeiro, 1969, pág. 112, extraímos o texto acima.
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"Sempre tenho confiança de que não serei maltratado na
porta do céu, e mesmo que São Pedro tenha ordem
para não me deixar entrar, ele ficará indeciso
quando eu lhe disser em voz baixa:
"Eu sou lá de Cachoeiro..."

Na noite de segunda-feira, 17 de dezembro de 1990, o escritor Rubem Braga reuniu um pequeno grupo de amigos, cada vez mais selecionados por ele, na sua cobertura em Ipanema. Foi uma visita silenciosa, mas claramente subentendida pelos amigos Moacyr Werneck de Castro, Otto Lara Resende e Edvaldo Pacote. Às 23h30 da noite de quarta-feira, sedado num quarto do Hospital Samaritano, Rubem Braga morreu, sozinho como desejara e pedira aos amigos.
A causa da morte foi uma parada respiratória em conseqüência de um tumor na laringe que ele preferiu não operar nem tratar quimicamente.
Rubem Braga, considerado por muitos o maior cronista brasileiro desde Machado de Assis, nasceu em Cachoeiro de Itapemirim, ES, a 12 de janeiro de 1913.
A chave para entendermos a popularidade de sua obra, toda ela composta de volumes de crônicas sucessivamente esgotados, foi dada pelo próprio escritor: ele gostava de declarar que um dos versos mais bonitos de Camões ("A grande dor das coisas que passaram"), fora escrito apenas com palavras corriqueiras do idioma. Da mesma forma, suas crônicas eram marcadas pela linguagem coloquial e pelas temáticas simples.
( ver biografia completa)

7 comentários:

  1. Querida Silvana, o amor, qualquer amor, é belo, embora pareça tolo aos que não o confessam publicamente e fingem não senti-lo. Rubem era assim, essa pessoa terna, que falava do cotidiano das pessoas e do seu próprio. Não conhecia a história da despedida dos amigos. Emocionante! Beijos

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  2. Poucas vezes, li um texto tão sensível, delicado e poético. Aconchegou-se lindamente em meu coração. Bjs.

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  3. não me lembro de ter lido o rubem braga. que falha, hein?

    bj

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  4. Querida Silvana. Rubem Braga é o máximo! Adorei teus blogs, são inteligentemente elaborados. Gostei também do teu comentário e visita; casualmente, amanhã estarei palestrando sobre relações humanas e autoestima em uma região serrana gaúcha onde se trabalha com panificação. Moro a 30km da capital da pimenta também. (Ah, como bom gaúcho que sou, também visito a Cidade Maravilhosa ao menos uma vez por ano!)

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  5. Escolheu a morte. Regra geral ela é que nos escolhe. bfds

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  6. Olá Silvana, excelente texto. Adorei.
    Beijinhos
    Bom fim de semana

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