sábado, 25 de dezembro de 2010

OS SONS DE ANTIGAMENTE.

A crônica publicada abaixo tem como tema o relógio antigo da casa onde morou Rubem Braga, em Cachoeiro do Itapemirim, e que foi roubado recentemente da Casa dos Braga, museu mantido pela prefeitura local.
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Conta-se na família que, quando meu pai comprou a nossa casa de Cachoeiro, esse relógio já estava na parede da sala; e que o vendedor o deixou lá, porque naquele tempo não ficava bem levar.
Hoje, meu Deus, carregam até uma lâmpada de 60 velas, até o bocal da lâmpada, e deixam aquele fio solto no ar.
Há poucas anos trouxe o relógio para minha casa de Ipanema. Mais velho do que eu, não é de admirar que ele tresande um pouco. Há uma corda para fazer andar os ponteiros, outra para fazer bater as horas. A primeira é forte, e faz o relógio se adiantar: de vez em quando alguém me chama a atenção, dizendo que o relógio está adiantado quinze ou vinte, minutos, e eu digo que é a hora de Cachoeiro. Em matéria de som vamos muito mais adiante. É comum o relógio marcar, digamos, duas e meia, e bater solenemente nove horas. "Esse relógio não diz coisa com coisa", comenta um, amigo severo. Explico que é uma pequena disfunção audiovisual.
Na verdade essa defasagem não me aborrece nada; há muito desanimei de querer as coisas deste mundo todas certinhas, e prefiro deixar que o velho relógio badale a seu bel-prazer. Sua batida e suave, como costumam ser a desses Ansonias antigos; e esse som me carrega para as noites mais antigas da infância. As vezes tenha a ilusão de ouvir, no fundo, o murmúrio distante e querido do Itapemirim.
Que outros sons me chegam da infância? Um cacarejar sonolento de galinhas numa tarde de verão; um canto de cambaxirra, o ranger e o baque de uma porteira na fazenda, um tropel de cavalos que vinha vindo e depois ia indo no fundo da noite. E o som distante dos bailes do Centro Operária, com um trombone de vara ou um pistom perdidos na madrugada.
Sim, sou um amante da música, ainda que desprezado e infeliz. Sou desafinado, desentoado, um amigo diz que tenho orelha de pau. Outro dia fiquei perplexo ouvindo uma discussão de jovens sobre um som que eu achava perfeito e eles acusavam de flutter, wow, rumble, hiss e outros males estranhos.
Meu amigo Mario Cabral dizia que queria morrer ouvindo Jesus, Alegria dos Homens; nunca soube se lhe fizeram a vontade. A mim, um lento ranger de porteira e seu baque final, como na fazenda do Frade, já me bastam. Ou então a batida desse velho relógio, que marcou a morte de meu pai e, vinte anos depois, a de minha mãe; e que eu morra às quatro e quarenta toda manhã, com ele marcando cinco e batendo onze, não faz mal; até é capaz de me cair bem.

- Rubem Braga -

4 comentários:

  1. Adorei começar meu dia com esta crônica.

    Um feliz Natal e um ano de muita luz e paz pra ti.

    Um grande abraço

    Isa

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  2. Postagem MARAVILHOSAAAAAAAAAAAAAA...
    Beijosss...

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  3. Silvana, Feliz Natal!
    Este relógio é identico ao de minha avó e também tinha as mesmas características do conto do Rubem Braga.
    Voltei no tempo com isso. Essa deve ser a magia do conto, não?!
    Paz e Luz!

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  4. Querida Silvana, assim como no velho relógio, o tempo é relativo. O que nos dá a chance de voltarmos ao passado para relembrar momentos memoráveis. Bom, né? Que seu 2011 seja abençoado e que você continue a nos briandar com seu belo Caderno de Poesia. Beijos. Felicidades. Angela
    http://noticiasdacozinha.blogspot.com

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