sexta-feira, 27 de agosto de 2010

RECADO AO SENHOR 903.

Vizinho,

Quem fala aqui é o homem do 1003. Recebi outro dia, consternado, a visita do zelador, que memostrou a carta em que o senhor reclamava contra o barulho em meu apartamento. Recebi depois a sua própria visita pessoal – devia ser meia-noite – e a sua veemente reclamação verbal. Devo dizer que estou desolado com tudo isso, e lhe dou inteira razão. O regulamento do prédio é explícito e, se não o fosse, o senhor teria ainda ao seu lado a Lei e a Polícia. Quem trabalha o dia inteiro tem direito ao repouso noturno e é impossível repousar no 903 quando há vozes, passos e músicas no 1003. Ou melhor: é impossível ao 903 dormir quando o 1003 se agita; pois como não sei o seu nome nem o senhor sabe o meu, ficamos reduzidos a ser dois números, dois números empilhados entre dezenas de outros. Eu, 1003, me limito a Leste pelo 1005, a Oeste pelo 1001, ao Sul pelo Oceano Atlântico, ao Norte pelo 1004, ao alto pelo 1103 e embaixo pelo 903 – que é o senhor. Todos esses números são comportados e silenciosos; apenas eu e o Oceano Atlântico fazemos algum ruído e funcionamos fora dos horários civis; nós dois apenas nos agitamos e bramimos ao sabor da maré, dos ventos e da lua. Prometo sinceramente adotar, depois das 22 horas, de hoje em diante, um comportamento de manso lago azul. Prometo.
Quem vier à minha casa (perdão, ao meu número) será convidado a se retirar às 21:45, e explicarei: o 903 precisa repousar das 22 às 7 pois às 8:15 deve deixar o 783 para tomar o 109 que o levará até o 527 de outra rua, onde ele trabalha na sala 305. Nossa vida, vizinho, está toda numerada; e reconheço que ela só pode ser tolerável quando um número não incomoda outro número, mas o respeita, ficando dentro dos limites de
seus algarismos. Peço-lhe desculpas – e prometo silêncio. Mas que me seja permitido sonhar com outra vida e outro mundo, em que um homem batesse à
porta do outro e dissesse: “Vizinho, são três horas da manhã e ouvi música em tua casa. Aqui estou.” E o outro respondesse: “Entra, vizinho, e come de meu pão e bebe de meu vinho. Aqui estamos todos a bailar e a cantar, pois descobrimos que a vida é curta e a lua é bela”.
E o homem trouxesse sua mulher, e os dois ficassem entre os amigos e amigas do vizinho entoando canções para agradecer a Deus o brilho das estrelas e o murmúrio da brisa nas árvores, e o dom da vida, e a amizade entre os humanos, e o amor e a paz.

- Rubem Braga -

9 comentários:

  1. Nossa! Fazia tempo que não lia esse texto, era um dos meus preferidos quando na infância eu pegava os livros de literatura que minha mãe e tios estudaram para passar o tempo, eu relia innúmeras vezes. Bons tempos...
    Beijos.

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  2. Silvana,
    Agradeço e retribuo tua vista. Teu blog apresenta uma seleção de autores do mais alto nível em termos de sensibilidade e conhecimento da alma humana. Voltarei aqui mais vezes para expandir meus horizontes. Um forte abraço do
    Leonam

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  3. Oi, Silvana

    Este texto é realmente espetacular.
    Que saudades do tempo em que conhecíamos nossos vizinhos pelos nomes e entrávamos em suas casas sem precisar de convite e à hora que queríamos.
    Adorei!

    Bjs no coração!

    Nilce

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  4. Adorei Slivana!

    "Nossa vida, vizinho, está toda numerada; e reconheço que ela só pode ser tolerável quando um número não incomoda outro número, mas o respeita, ficando dentro dos limites de
    seus algarismos".

    Bom seria juntar as mãos e viver em paz enquanto se admira a presença fascinante das estrelas!!

    Um beijo e um excelente final de semana!!

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  5. Quem dera que pudessêmos voltar ao tempo e ter verdadeiros vizinhos, além de um mero incomodo, que se conhece apenas por adjetivos, que muitas as vezes não são agradáveis...

    Shalon

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  6. Esse texto é um dos meus preferidos, senão o mais de Rubem Braga. Adorei reler. Um grande abraço.

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  7. Hoje em dia mal sabemos quem estar ao nosso lado. Lindo texto, bjs

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  8. Parabéns pela escolha desse texto. Aproveitei o mesmo e coloquei numa atividade com meus alunos.
    Sou professora de Matemática. Abraços,
    Anaildes Moreira.

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  9. nossa muitu legal essa cronica !!! amei '-'

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