quinta-feira, 29 de julho de 2010

EU SEI, MAS NÃO DEVIA.


Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.

- Marina Colasanti -

15 comentários:

  1. E assim, anestesiados, passamos ao lado das coisas, qual rebanho imenso comprimido incessantemente contra as tábuas da cerca.

    Que coincidência! Passe no meu blogue e espreite.

    Beijo

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  2. É verdade amiga, a gente se acostuma na tentativa de não sofrer.

    bjs

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  3. Belo texto da escritora Marina Colasanti, Silvana. Os hábitos fazem as pessoas. Vamos nos acostumar com o que, de fato, nos torna melhores. Não vamos nos perder de nós mesmos. Um bom dia, beijos no seu coração ;)

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  4. Ufa....sempre...tem frescor esse texto!

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  5. Minha querida Silvana

    Passei para deixar um beijinho e o meu carinho.

    Sonhadora

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  6. Querida amiga, cheguei a conclusão que acabamos por nos acostumar mais com as coisas ruins que boas, parece que tudo o que nos é imposto aceitamos sem reclamar. Precisamos mudar de atitude e pelo menos tentar abrir as cortinas. Beijocas

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  7. marina é escritora maravilhosa! seja de contos fantásticos, seja de textos assim.

    beijo!

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  8. É asssim mesmo, e lendo o texto condensando tudo isso, sinto o cansaço e me pergunto: cadê a vida, mesmo????
    Beijos

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  9. Realmente a gente se acostuma a tudo isto e se não se acostuma pelo menos aceitamos e vamos levando aos tranco e barrancos.
    Alguns são ate felizes assim pois existe louco para tudo neste mundo.
    Apesar de nascido na maior Metrópole do America Latina ainda sonho em deixar tudo estes costumes.


    OMNIA VINCIT!

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  10. Passo para deixar-te um fraterno abraço e exaltar teus posts !

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  11. Passamos muitas vezes distraídos pela vida...
    Sem nem quer nos atrairmos pela questão do por que estamos aqui afinal. O que é lamentável,
    pois descobrir a si mesmo, é tão divertido como conhecer o universo inteiro sem precisar sair do lugar.

    Adorei o seu blog!

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  12. Marina Colassanti fala sobre sermos acomodados, nos acostumando com as coisas, devido a essa vida corrida e a essa sociedade reprimida em que vivemos.

    Muitas coisas que ela citou, eu não faço, como por exemplo:

    - Eu olho para fora, da sacada ou da janela... Posso ver o verde e as árvores espalhando suas folhas secas e flores coloridas ao seu redor, sinto o sol da manhã, aprecio a lua ao anoitecer e "almoço'!

    Não quero gastar a minha vida de tanto acostumar... Quero viver a vida intensamente.

    Bjs
    Chris

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  13. Viva Marina! Que nos alerta e incita ao grito: NÃO! Desacostumar é preciso. Beijos

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  14. A gente acostuma até com a falta de tempo para viver!

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