domingo, 27 de fevereiro de 2011

DIFÍCIL SER FUNCIONÁRIO.


Difícil ser funcionário
Nesta segunda-feira.
Eu te telefono, Carlos
Pedindo conselho.

Não é lá fora o dia
Que me deixa assim,
Cinemas, avenidas,
E outros não-fazeres.

É a dor das coisas,
O luto desta mesa;
É o regimento proibindo
Assovios, versos, flores.

Eu nunca suspeitara
Tanta roupa preta;
Tão pouco essas palavras —
Funcionárias, sem amor.

Carlos, há uma máquina
Que nunca escreve cartas;
Há uma garrafa de tinta
Que nunca bebeu álcool.

E os arquivos, Carlos,
As caixas de papéis:
Túmulos para todos
Os tamanhos de meu corpo.

Não me sinto correto
De gravata de cor,
E na cabeça uma moça
Em forma de lembrança

Não encontro a palavra
Que diga a esses móveis.
Se os pudesse encarar...
Fazer seu nojo meu...

Carlos, dessa náusea
Como colher a flor?
Eu te telefono, Carlos,
Pedindo conselho.

- João Cabral de Melo Neto - 


O poema acima, escrito em 29-09-1943, revela a decisiva influência de Carlos Drummond de Andrade nas primeiras produções do autor. Inédito, foi extraído dos "Cadernos de Literatura Brasileira", nº. 01, publicado pelo Instituto Moreira Salles em Março de 1996, pág.60.

4 comentários:

  1. Silvana, minha querida, passando pra matar as saudades do seu cantinho mágico. E de cara encontro João Cabral... AMEI! :)

    Vc é maravilhosa em suas postagens, querida.

    Beijo grande de saudades e um ótimo domingo pra vc!

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  2. Eu tenho sérios problemas com poesias. Custo a identificar-me com alguma. No entanto, essa poesia é uma das minhas favoritas.

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  3. Tão poeticamente bela a expressão do tédio em fazer o que ele não gosta. É assim, o poeta consegue transformar até seu enfado em beleza.
    Viva João Cabral! Beijos, bom domingo Angela

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  4. João Cabral é o máximo, querida. Um forte abraço!

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