segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

ESTÂNCIAS.

"O que eu adoro em ti não são teus olhos,
teus lindos olhos cheios de mistério,
por cujo brilho os homens deixariam
da terra inteira o mais soberbo império.

O que eu adoro em ti não são teus lábios,
onde perpétua juventude mora,
e encerram mais perfumes do que os vales
por entre as pompas festivais da aurora.

O que eu adoro em ti não é teu rosto
perante o qual o marmor descorara,
e ao contemplar a esplêndida harmonia
Fídias, o mestre, seu cinzel quebrara.

O que eu adoro em ti não é teu colo,
mais belo que o da esposa israelita,
torre de graças, encantado asilo,
aonde o gênio das paixões habita.

O que eu adoro em ti não são teus seios,
alvas pombinhas que dormindo gemem,
e do indiscreto vôo duma abelha
cheias de medo em seu abrigo tremem.

O que eu adoro em ti, ouve, é tu'alma,
pura como o sorrir de uma criança,
alheia ao mundo, alheia aos preconceitos,
rica de crenças, rica de esperança.

São as palavras de bondade infinda
que sabes murmurar aos que padecem,
os carinhos ingênuos de teus olhos
onde celestes gozos transparecem!...

Um não sei quê de grande, imaculado,
que faz-me estremecer quando tu falas,
e eleva-me o pensar além dos mundos
quando, abaixando as pálpebras, te calas.

E por isso em meus sonhos sempre vi-te
entre nuvens de incenso em aras santas,
e das turbas solícitas no meio
também contrito hei-te beijado as plantas.

E como és linda assim! Chamas divinas
cercam-te as faces plácidas e belas,
um longo manto pende-te dos ombros
salpicado de nítidas estrelas!

Na doida pira de um amor terrestre
pensei sagrar-te o coração demente...
Mas ao mirar-te deslumbrou-me o raio...
tinhas nos olhos o perdão somente!".

- Fagundes Varela -

domingo, 26 de dezembro de 2010

MONTEIRO LOBATO.

Depois de passar pela corte portuguesa, pela guerra dos quadrinhos, por empinadores de pipas, pelos bruxos meninos e por vampiros bem apessoados, voltei ao velho e grande amor: os livros infantis de Monteiro Lobato.
Depois de muitos e muitos anos, o texto ainda me encanta e surpreende.
Como não tenho problema com a diferença de linguagem (vivi e falei o português do Sítio do Picapau), estou fazendo uma gostosa releitura.
Para tanto, em vez de sair catando os livros da minha infância pelas estantes, aproveitei que já fizeram isso: em 1982, a Editora Brasiliense publicou a obra infantil completa de Lobato, por ocasião do centenário do seu nascimento. E tem sido uma delícia reler e "rever" as traquinagens da turminha da Emília. Iluminadas pela inteligência, argúcia, ousadia do polêmico escritor.
Mas o livrão – um tijolo – não tem somente os contos. Tem muito da história da vida de Lobato e, para minha satisfação pessoal, tudo sobre todos os ilustradores da sua obra.
Daí me lembro que depois dos gibis, quando estes não me satisfaziam mais a fome intelectual, foram os livros de Monteiro Lobato que alicerçaram meu caminho rumo à literatura global.... Que me transformaram em um leitor compulsivo.

Como considero "Os Trabalhos de Hércules" o momento maior das obras infantis de Lobato (seu último trabalho no gênero), recomecei a ler o autor a partir desse "grand finale". E reaprendo Grécia clássica, seus escultores, seus filósofos, mitologia, com o tempero sem cerimônia da turminha da Emília. Dela, principalmente.
Em seguida voltarei para os outros livros, enfeixados na edição especial. Até chegar na origem do sítio: As Reinações de Narizinho.
Depois dos bruxos e dos vampiros de outros autores lá de longe, vou de assombrações bem caboclas, como as que já me assustavam mesmo antes de ler Lobato, trazidas pelas histórias contadas pela minha vó Dita.
Quer sentir Brasil na linguagem pura e sem cerimônia de algum tempo atrás? Tire seu Lobato da estante e refastele-se.
Conheça – ou reconheça – o escritor destemido de uma época turbulenta da nossa história política. Admire-se com sua antevisão do futuro, brigando pelo aço e pelo petróleo antes destes existirem no país, e perceba que durante essa guerra que travava contra o atraso, semeava ideias e livros para as crianças. Os melhores de todos os tempos.
Delícia reler e reencontrar a turma da Emília.
Lobato não morre.

 - Mauricio de Souza ( 13 de abril de 2010) -
Fonte: http://www.monica.com.br/index.htm

sábado, 25 de dezembro de 2010

OS SONS DE ANTIGAMENTE.

A crônica publicada abaixo tem como tema o relógio antigo da casa onde morou Rubem Braga, em Cachoeiro do Itapemirim, e que foi roubado recentemente da Casa dos Braga, museu mantido pela prefeitura local.
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Conta-se na família que, quando meu pai comprou a nossa casa de Cachoeiro, esse relógio já estava na parede da sala; e que o vendedor o deixou lá, porque naquele tempo não ficava bem levar.
Hoje, meu Deus, carregam até uma lâmpada de 60 velas, até o bocal da lâmpada, e deixam aquele fio solto no ar.
Há poucas anos trouxe o relógio para minha casa de Ipanema. Mais velho do que eu, não é de admirar que ele tresande um pouco. Há uma corda para fazer andar os ponteiros, outra para fazer bater as horas. A primeira é forte, e faz o relógio se adiantar: de vez em quando alguém me chama a atenção, dizendo que o relógio está adiantado quinze ou vinte, minutos, e eu digo que é a hora de Cachoeiro. Em matéria de som vamos muito mais adiante. É comum o relógio marcar, digamos, duas e meia, e bater solenemente nove horas. "Esse relógio não diz coisa com coisa", comenta um, amigo severo. Explico que é uma pequena disfunção audiovisual.
Na verdade essa defasagem não me aborrece nada; há muito desanimei de querer as coisas deste mundo todas certinhas, e prefiro deixar que o velho relógio badale a seu bel-prazer. Sua batida e suave, como costumam ser a desses Ansonias antigos; e esse som me carrega para as noites mais antigas da infância. As vezes tenha a ilusão de ouvir, no fundo, o murmúrio distante e querido do Itapemirim.
Que outros sons me chegam da infância? Um cacarejar sonolento de galinhas numa tarde de verão; um canto de cambaxirra, o ranger e o baque de uma porteira na fazenda, um tropel de cavalos que vinha vindo e depois ia indo no fundo da noite. E o som distante dos bailes do Centro Operária, com um trombone de vara ou um pistom perdidos na madrugada.
Sim, sou um amante da música, ainda que desprezado e infeliz. Sou desafinado, desentoado, um amigo diz que tenho orelha de pau. Outro dia fiquei perplexo ouvindo uma discussão de jovens sobre um som que eu achava perfeito e eles acusavam de flutter, wow, rumble, hiss e outros males estranhos.
Meu amigo Mario Cabral dizia que queria morrer ouvindo Jesus, Alegria dos Homens; nunca soube se lhe fizeram a vontade. A mim, um lento ranger de porteira e seu baque final, como na fazenda do Frade, já me bastam. Ou então a batida desse velho relógio, que marcou a morte de meu pai e, vinte anos depois, a de minha mãe; e que eu morra às quatro e quarenta toda manhã, com ele marcando cinco e batendo onze, não faz mal; até é capaz de me cair bem.

- Rubem Braga -

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

A ARCA DE NOÉ.


Tudo que eu preciso saber sobre a vida, 
eu aprendi eu aprendi com a Arca de Noé:
 
1º- Não perca o barco;
2°- Lembre -se de que estamos todos no mesmo barco;
3°- Planeje -se com antecedência: ....Não estava chovendo quando Noé construiu a arca.
4°- Mantenha -se em forma : ....Quando você tiver 600 anos de idade, alguém pode lhe pedir para fazer algo realmente grande.
5°- Não ouça os críticos, apenas continue a fazer o trabalho que precisa ser feito.
6°- Contrua seu futuro em terreno alto.
7°- Por razões de segurança, viaje aos pares.
8°- A velocidade nem sempre é uma vantagem. Os guepardos estavam a bordo da arca, mas as
tartarugas também.
9°- Quando estiver extressado, procure boiar.
10°- Lembre -se que a arca foi contruída por amadores e o Titanic por profissionais.

( autor desconhecido)
Desconheço a autoria da foto publicada acima

domingo, 19 de dezembro de 2010

O MENINO QUE CARREGAVA ÁGUA NA PENEIRA.


Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino
que carregava água na peneira.

A mãe disse que carregar água na peneira
era o mesmo que roubar um vento e sair
correndo com ele para mostrar aos irmãos.

A mãe disse que era o mesmo que
catar espinhos na água
O mesmo que criar peixes no bolso.

O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos.
A mãe reparou que o menino
gostava mais do vazio
do que do cheio.
Falava que os vazios são maiores
e até infinitos.

Com o tempo aquele menino
que era cismado e esquisito
porque gostava de carregar água na peneira

Com o tempo descobriu que escrever seria
o mesmo que carregar água na peneira.

No escrever o menino viu
que era capaz de ser
noviça, monge ou mendigo
ao mesmo tempo.

O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.

Foi capaz de interromper o vôo de um pássaro
botando ponto final na frase.

Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.

O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor!
A mãe reparava o menino com ternura.

A mãe falou:
Meu filho você vai ser poeta.
Você vai carregar água na peneira a vida toda.

Você vai encher os
vazios com as suas
peraltagens
e algumas pessoas
vão te amar por seus
despropósitos.

(Manoel de Barros)

VISITE:
http://www.silnunesprof.blogspot.com

domingo, 12 de dezembro de 2010

LUTO DA FAMÍLIA SILVA.


    Assistência foi chamada. Veio tinindo. Um homem estava morto. O cadáver foi removido para o necrotério. Na seção dos “Fatos Diversos" do Diário de Pernambuco, leio o nome do sujeito João da Silva. Morava na Rua da Alegria. Morreu de hemoptise.
  João da Silva - Neste momento em que seu corpo vai baixar à vala comum, nós, seus amigos e seus irmãos, vimos lhe prestar esta homenagem. Nós somos os Joões da silva. Nós somos os populares Joões da Silva. Moramos em várias casas e em várias cidades. Moramos principalmente na rua. Nós pertencemos, como você, à família Silva. Não é uma família ilustre; nós não temos avós na história. Muitos de nós usamos outros nomes, para disfarce. No fundo, somos os Silva. Quando o Brasil foi colonizado, nós éramos os degredados. Depois fomos os índios. Depois fomos os negros. Depois fomos imigrantes, mestiços. Somos os Silva. Algumas pessoas importantes usaram e usam nosso nome. É por engano. Os Silva somos nós. Não temos a mínima importância. Trabalhamos andamos pelas ruas e morremos. Saímos da vala comum da vida para o mesmo local da morte. Às vezes, por modéstia, não usamos nosso nome de família. Usamos o sobrenome de Tal". A família Silva e a família “de Tal" são a mesma família. E, para falar a verdade, uma família que não pode ser considerada boa família. Até as mulheres que não são de família pertencem à família Silva.

    João da Silva - Nunca nenhum de nós esquecerá seu nome. Você não possuía sangue azul. O sangue que saía de sua boca era vermelho - vermelhinho da silva. Sangue de nossa família. Nossa família, João, vai mal em política. Sempre por baixo. Nossa família, entretanto, é que trabalha para os homens importantes. A família Crespi, a família Matarazzo, a família Guinle, a família Rocha Miranda, a família Pereira Carneiro, todas essas famílias assim são sustentadas pela nossa família. Nós auxiliamos várias famílias importantes na América do Norte, na Inglaterra, na França, no Japão. A gente de nossa família trabalha nas plantações de mate, nos pastos, nas fazendas, nas usinas, nas praias, nas fábricas, nas minas, nos balcões, no mata, nas cozinhas, em todo lugar onde se trabalha. Nossa família quebra pedra, faz telhas de barro, laça os bois, levanta os prédios, conduz as bondes, enrola o tapete do circo, enche os porões dos navios, conta o dinheiro dos Bancos, faz os jornais, serve no Exército e na Marinha. Nossa família é feito Maria Polaca: faz tudo.
Apesar disso, João da Silva, nós temos de enterrar você é mesmo na vala comum. Na vala comum da miséria. Na vala comum da glória, João da Silva. Porque nossa família um dia há de subir na política.

- Rubem Braga -   
(junho 1935)

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

POBRE AMOR.


Calcula, minha amiga, que tortura!
Amo-te muito e muito, e, todavia,
Preferira morrer a ver-te um dia
Merecer o labéu de esposa impura!

Que te não enterneça esta loucura,
Que te não mova nunca esta agonia,
Que eu muito sofra porque és casta e pura,
Que, se o não foras, quanto eu sofreria!

Ah! Quanto eu sofreria se alegrasses
Com teus beijos de amor, meus lábios tristes,
Com teus beijos de amor, as minhas faces!

Persiste na moral em que persistes.
Ah! Quanto eu sofreria se pecasses,
Mas quanto sofro mais porque resistes!

- Aluísio Oliveira - 

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ALUISIO TANCREDO GONÇALVES DE AZEVEDO

Nascimento: 14/04/1857, São Luis, Maranhão, Brasil
Falecimento: 21/01/1913, Buenos Aires, Argentina
Cônsul e romancista influenciado por Zola, inicia o naturalismo no país; autor de "O Mulato" (1881) e "O Cortiço" (1896).
"As grandes crises podem divinizar ou prostituir uma consciência, do mesmo feitio que um grande amor pode divinizar ou prostituir uma mulher."

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

FADAS E BRUXAS.

 
"Metade de mim é fada,
a outra metade é bruxa.
Uma escreve com sol,
a outra escreve com a lua.
Uma anda pelas ruas cantarolando baixinho,
a outra caminha de noite dando de comer à sua sombra.
Uma é séria, a outra sorrí;
uma voa, a outra é pesada.
Uma sonha dormindo,
a outra sonha acordada".

(Roseana Murray in Pêra, Uva ou Maçã, ed. Scipione, 2005)